Mesmo sem eficácia comprovada cientificamente, duas redes privadas de saúde, a Unimed Fortaleza e o Hapvida, começaram a distribuir um coquetel de medicamentos que inclui, respectivamente, a cloroquina e a hidroxicloroquina para o tratamento de pessoas infectadas pelo novo Coronavírus.
Vistos como uma tentativa de evitar internação de pacientes com a Covid-19, os kits com cloroquina começaram a ser distribuídos pela Unimed nesta terça-feira, 19 de maio. Pelo Hapvida, a hidroxicloroquina está sendo oferecida desde o dia seis de maio.
Entregue gratuitamente e exclusivamente aos clientes das redes de saúde, o paciente deve apresentar receituário médico, termo de consentimento assinado por ele e identificação (carteira do plano e documento de identidade) para poder retirar a medicação nas unidades das empresas.
A Unimed deve distribuir 15 mil tratamentos de cloroquina. Já o Hapvida informa que serão 20 mil de hidroxicloroquina.
Estudos não veem eficácia e apontam risco de morte com remédios
A cloroquina e a hidroxicloroquina (derivado da cloroquina e guarda as mesmas propriedades, mas tem a toxicidade atenuada) já são usadas no tratamento da malária e algumas doenças reumáticas como artrite reumatoide e lúpus.
Uma das principais pesquisas para saber se os remédios poderiam ser usados no combate à Covid-19 teve resultado publicado este mês na revista científica “Jama” (“Journal of the American Medical Association”).
O estudo, feito por pesquisadores da Universidade de Albany, nos EUA, não encontrou relação entre o uso do medicamento e a redução da mortalidade pela doença. Foram analisados 1.438 pacientes infectados com coronavírus, em 25 hospitais de Nova York.
A taxa de mortalidade dos pacientes tratados com hidroxicloroquina foi semelhante à dos que não tomaram o medicamento, assim como à das pessoas que receberam hidroxicloroquina combinada com o antibiótico azitromicina.
Ainda segundo os autores do estudo, os pacientes que tomaram a combinação de medicamentos tiveram duas vezes mais chances de sofrer parada cardíaca. Problemas cardíacos são um efeito colateral conhecido da hidroxicloroquina.
Outra pesquisa sobre o tratamento com hidroxicloroquina, cujo resultado foi publicado recentemente na revista britânica “The New England Journal of Medicine”, já havia apresentado conclusão semelhante à divulgada pela “Jama”.
O estudo, feito no Presbyterian Hospital, em Nova York, e revisado por outros cientistas, não encontrou evidências de que a droga tenha reduzido o risco de intubação ou de morte pela Covid-19.
Foram analisados pacientes em quadros moderados a graves.
Entre 1.376 pessoas acompanhadas, pacientes com e sem o tratamento com a droga apresentaram o mesmo risco de uma piora, necessidade de intubação e de morte.
Entidades da área médica não recomendam uso do medicamento
A Associação de Medicina Intensiva Brasileira, a Sociedade Brasileira de Infectologia e a Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia recomendam a não utilização de hidroxicloroquina, cloroquina e de suas associações com azitromicina na rotina de tratamento da Covid-19.
As entidades científicas afirmam também que, em um contexto como o atual, os recursos para enfrentamento da pandemia devem ser direcionados para intervenções médicas com maior certeza de benefício.
Secretaria de Saúde do Ceará alerta para riscos
Ao jornal Estadão, a Secretaria Estadual de Saúde do Ceará (Sesa) reconhece que não existem evidências científicas disponíveis sobre a utilização das substâncias para combate a contaminação e a disseminação da doença e alerta que o uso da cloroquina deve ser sempre discutido com um médico, “pois não se trata de medicamento isento de efeitos colaterais”. Além disso, a pasta afirma que o “tratamento domiciliar e a automedicação são, portanto, contraindicados”, ou seja, justamente o que propõem os planos de saúde.
Outro estado
A distribuição de medicamentos também foi adotada pela Unimed Belém (PA). Cerca de 400 pessoas recebem as drogas em um drive-thru instalado pela empresa. Em nota, o ICTQ – Instituto de Pesquisa e Pós-Graduação para o Mercado Farmacêutico, do Pará, disse que “isso é propaganda enganosa, isso é crime sanitário, é crime contra a saúde pública”, opina a empresa, que acredita que o intuito é esvaziar os leitos dos hospitais e deixar os pacientes à própria sorte.
“Passei muito mal”, diz paciente
No site “Reclame Aqui”, em postagem feita ontem (19), uma cliente do Hapvida relata a sua experiência com a indicação médica do uso da hidroxicloroquina. Na segunda tentativa de tratar os sintomas da Covid-19, que lhe causou uma pneumonia, ela relata que o hospital da rede, o Antonio Prudente, prescreveu Hidroxicloroquina e a liberou para tratamento em casa, mesmo estando com grande dificuldade para respirar.
“Quando tomei a Hidroxicloroquina, passei muito mal e em duas horas precisei voltar às pressas ao hospital porque tive uma reação de pressão, como se algo apertasse no peito. (Dor) muito grande e desesperador, acompanhado de uma queimação por todo o tórax”, narra.
A moça explica que desde então passou a sentir constantemente pressão alta, dores no tórax, nas costas e na cabeça e voltou a procurar o hospital no dia 18 de maio, mais uma vez sem conseguir internação. “Sinto-me impotente, vulnerável e com muito medo por não conseguir um tratamento eficaz”, reclama.
Morte em casa
A ampliação do uso de cloroquina para pacientes com quadro leve de Covid-19 pode elevar a pressão por vagas em centros de terapia intensiva e provocar mortes em casa por arritmia. É o que afirma o ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta.
Ao jornal Folha de S. Paulo, Mandetta disse: “Do que sei dos estudos que me informaram e não concluíram, 33% dos pacientes em hospital, monitorados com eletrocardiograma contínuo, tiveram que suspender o uso da cloroquina porque deu arritmia que poderia levar a parada (cardíaca)”.
Esse risco foi que teria levado o ex-Ministro a adotar a orientação de usar a cloroquina apenas para os casos graves em hospital. Fora do hospital, o uso do medicamento fica sob conta e risco do médico assistente.
Empresas rezam cartilha do presidente
Mesmo sem evidências científicas de suporte, o presidente brasileiro Jair Bolsonaro (sem partido) tem pressionado para uma utilização ampla da droga, inclusive para casos leves. A pressão levou à queda do ex-ministro Nelson Teich, que, após um ultimato do presidente por um protocolo de uso da droga para casos leves, afirmou que a mudança não era correta e não tinha amparo cientifico e pediu demissão.
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