Durante a última década, o Brasil vivenciou um intenso fenômeno político e econômico, a ascensão de milhões de pessoas à chamada “nova Classe C”. Para analisar esse novo elemento social brasileiro, o presidente do Instituto de Pesquisa Aplicada (Ipea), Márcio Porchmann, escreveu o livro “Nova Classe Média?” pela editora Boitempo. O livro tem lançamento e debate programados para o dia 29 desse mês de maio, às 19h30, no prédio da Economia da PUC, em São Paulo.
Para o pesquisador há uma disputa sobre o que represente essa nova Classe, principalmente em torno da discussão se ela pertence a um setor da classe média, ou se é um setor da classe trabalhadora. Para ele, essa discussão tem intensas repercussões sobre a atuação e o papel do Estado .
“Se a identidade que nos estamos tendo é a de classe média a pressão para que o Estado subsidie o setor privado tenderá a ser maior. Se nós entendemos que se trata de novos segmentos no interior da classe trabalhadora a pressão é de outra natureza”, afirmou.
Ele traçou ainda um perfil dessas novas pessoas que ascenderam da base da pirâmide social, que pare ele escaparam da influência das instituições políticas democráticas. Para ele isso tem repercussões importantes na política brasileira.
Confira abaixo a entrevista na íntegra.
Caros Amigos – Quais são as principais características dessa nova classe C?
Marcio Porchmann – Ao meu ver todo esse processo não constituiu o surgimento de uma nova classe, pelo contrário são segmentos novos no interior da classe trabalhadora. Essa ascensão tem características muito individualistas, muito movidas pelo próprio consumo. É um segmento especialmente concentrado no setor de serviços, e que as instituições civil-democráticas, como por exemplo, associações de bairro, associações estudantis e de trabalhadores, os próprios partidos políticos, não conseguiram capturar.
Esse segmento ascende, emerge, mas é movido fundamentalmente pelo consumo. Isso é até natural, eu diria. Nós tivermos durante a década de 1970 outro momento de ascensão social importante, especialmente porque durante esse época vivenciamos o chamado “milagre econômico”, quando a economia cresceu em média 10% ao ano. Então houve um forte crescimento econômico que foi puxado pelos empregos na indústria. Nessa época a mobilidade social foi muito forte, porque eram as pessoas que vinham do campo, ainda nos anos 1960 e 1970 havia o campo que não conhecia luz elétrica, água encanada, etc.
Essas pessoas vieram para as grandes cidades basicamente por conta do emprego industrial, só que as cidades brasileiras não estavam preparadas para receber esse fluxo de imigrantes que vinham do campo e do interior do Brasil e com isso as pessoas acabaram indo morar nas favelas, onde não tinham acesso a água encanada, luz elétrica, etc. É dessa época parte significativa das favelas nas grandes cidades do Brasil. Isso gerou um estranhamento, e esse estranhamento na segunda metade dos anos 1970 foi de alguma maneira capturado por instituições que se formaram durante a transição política brasileira, da ditadura para o regime democrático. Instituições como as comunidades eclesiais de base, associações de bairro, o próprio renascimento do movimento estudantil, o renascimento do sindicalismo, a construção dos partidos políticos, e a transição para a democracia, e até mesmo a constituição de 1988 que de certa maneira é fruto do que aconteceu com esse novos segmentos emergentes que eram basicamente classe trabalhadora do ramo industrial. Eles foram protagonistas dessa transição.
O que nos estamos vendo agora é que o setor que é protagonista na geração de emprego nessa primeira do século XXI é o setor de serviços, e aí são postos de trabalho vinculados a atividades de terceirização, por exemplo, atividades temporárias. É um segmento que não tem suas aspirações capturadas pelas instituições democráticas, e isso aponta para um segmento onde justamente uma das características é a baixa escolarização.
É um segmento, que obviamente, depende do desenvolvimento econômico e da geração de empregos. Por outro lado se mostra conservador em outros valores como é o caso da pena de morte, religião, aborto, assim por diante. Então as características desse segmento são até naturais na medida em que não tenham um envolvimento com instituições democráticas. Esse é o desafio, eu diria assim, do movimento estudantil e sindical. Nós tivermos 1 milhão de estudantes de origem humilde que ascenderam ao nível superior por conta do ProUni (Programa Universidade para todos), por exemplo. Então esse segmento que ascendeu, de certa maneira, não foi fortalecer, não foi fazer parte do movimento estudantil, que é uma das instituições importantes da democracia. Em um país que não tem tradição democrática como é o nosso, que é um país que completou agora 50 anos de experiência democrática em 500 anos de história, isso é um fato bastante significativo a ser considerado.
CA – A inserção dessas pessoas se deu pela via do consumo, mas pouco pela via do direito. Quais as consequências disso?
MP – Se não tiver a cultura política o que ocorre é que cada um acha que a ascensão dependeu do seu próprio esforço físico, porque afinal de contas foi ele que conseguiu o emprego, esse emprego veio com melhor salário e permitiu a ele ascender socialmente, então dá a perspectiva individualista, porque na verdade está faltando a cultura política. A expansão do emprego foi fruto de uma decisão política de uma nova maioria que se constituiu no país a partir de 2003 que entendeu que o Brasil não poderia mais seguir em uma trajetória de voo de galinha, que cresce um pouco um ano, no outro não crescia, que foi a experiência dos anos 1990.
A falta de uma política leva a esse quadro de uma visão mais individualizada. Ao mesmo tempo esses novos segmentos que ascenderam que são trabalhadores que não poupam, e que têm toda sua renda adicional voltada para o consumo, está sendo visto por alguns como nova classe média. O que está por trás disso é uma disputa sobre como deve ser a atuação do Estado, porque se eu identifico que esses segmentos são de estratos de classe média, o que está por trás disso não é a defesa, por exemplo, de políticas públicas universais. A classe média está preocupada com a educação e a saúde privada, está interessada em uma previdência privada, então isso é uma lógica diferente daqueles que nós poderíamos entender como sendo a de uma classe trabalhadora que está preocupada com políticas universais, como saúde e educação pública de qualidade.
Então esse é o embate que tem repercussões grandes no papel do Estado. Porque se a ideia é de classe média possivelmente a ação do Estado tende a ser cada vez mais dissociada de políticas voltadas para a universalização.
Durante os anos 1990 tinha-se uma clareza que o Estado não era eficiente, de que eficiente era o setor privado. Agora que essa tese, digamos assim, caiu, porque o Estado se mostrou absolutamente necessário. Agora se inicia um debate sobre como o Estado deve atuar, especialmente em termos de políticas públicas. Como se coloca esse dinheiro na sociedade, se é subsidiando a iniciativa privada. A receita federal, por exemplo, subsidia o gasto da saúde privada, da educação privada, da previdência privada, da assistência privada dos segmentos de maior renda no país. Porque quando você declara o imposto de renda pode-se abater do valor devido esse tipo de gasto. Então o Estado brasileiro financia o gasto privado nas áreas de educação, saúde, etc., desses segmentos que declaram imposto de renda, que não são os pobres.
Então se a identidade que nós estamos tendo é a de classe média, a pressão para que o Estado subsidie o setor privado tenderá a ser maior. Se nós entendemos que se trata de novos segmentos no interior da classe trabalhadora a pressão é de outra natureza.
CA – Essa política de crédito é uma política que pode se manter no longo prazo?
MP – A inteligência da política pública desde o início do governo Lula foi de viabilizar maior renda para esses segmentos da base da pirâmide social para ampliar o consumo, e ao ampliar o consumo nós fomos gradualmente ocupando a capacidade ociosa das empresas sem a necessidade de grandes investimentos. Agora estamos em condições mais difíceis para viabilizar essa perspectiva porque já há certa saturação da capacidade ociosa, e o grande desafio colocado é o do investimento, da ampliação da capacidade produtiva para atender as possibilidades de incorporação de novos segmentos, e ao mesmo tempo gerar empregos de classe média tradicional como bancários, professores. Mas isso só virá em grande quantidade com a ampliação nos investimentos, porque com mais investimentos se amplia a capacidade produtiva, o que significa a incorporação de novas tecnologias e a necessidade de incorporação de trabalhadores com maior escolaridade típica de classe média. O desafio, portanto, passa a ser o investimento e parece que o governo brasileiro está inclinado nesse sentido, especialmente quando nós olhamos as medidas mais recentes de reforço do setor produtivo com os subsídios fiscais, a queda na taxa de juros, as medidas de desvalorização da moeda. Esse conjunto de ações muito positivas está culminando para que o investimento produtivo ganhe maior dimensão.
CA – As condições de emprego que foram geradas durante a última década são diferentes das que foram geradas durante a década anterior?
MP – De fato o grosso das ocupações geradas foi de remuneração ao redor do salário mínimo, mas eu entendo que foi fundamental a geração desse universo de vagas, porque se nós tivéssemos gerados empregos tradicionais de classe média, esses segmentos que foram beneficiadas não teriam chance de disputar esses postos de trabalho, por terem um perfil em sua maioria de baixa escolaridade e de certa maneira ficariam marginalizados de empregos de maior requisito de contratação. Então é isso que explica o sucesso brasileiro de permitir que a inclusão social fosse o motor principal do próprio dinamismo econômico que inverteu a lógica anterior de crescer para depois distribuir. Para dar continuidade a essa política de mobilidade social é preciso de empregos de maior qualidade.
CA – Quais são os principais desafios do governo com relação a esse novo fenômeno?
MP – Inegavelmente você entra no tema de reformas, nós temos um padrão de arrecadação de recursos pelo Estado brasileiro que reforça a desigualdade, porque se arrecada fundamentalmente dos pobres e não dos que têm mais dinheiro. O Estado, nesse sentido, mostra que é muito forte para arrecadar dinheiro do pobre, mas é muito fraco para arrecadar dinheiro dos mais ricos. E esse tipo de receita, que é uma receita regressiva, não ajuda a diminuir a desigualdade, pelo contrário. Do ponto de vista do gasto do Estado nós percebemos que também não há um padrão homogêneo de intervenção do Estado. Por exemplo, na área de assistência social eu diria que é um padrão de característica social-democrata porque os segmentos mais pauperizados é que são beneficiados pelas políticas de assistência social. O mesmo não pode-se dizer em relação ao tema cultural, por exemplo. O Estado brasileiro, seja União, governos estaduais ou municipais não coloca os principais aparelhos de cultura na periferia, que é onde o povo pobre está. Os principais aparelhos culturais estão nas áreas mais ricas. Se olhamos do ponto de vista dos bancos, especialmente dos públicos, a presença dos bancos não estão nos pequenos municípios de maneira mais organizada. Nas favelas a mesma realidade. Então nós ainda temos um serviço bancário público em um formato para um segmento de renda um pouco maior. Portanto a reorientação do papel do Estado com esse olhar de enfrentamento da pobreza e da desigualdade é um grande desafio.
Fonte: Caros Amigos
Assessoria de Comunicação – FETAMCE
Fonte: Fetamce