Nota técnica sobre a proposta de extinção e transferência de comarcas da Justiça Estadual do Ceará

Causa espanto a proposta de reorganização do Código de Organização Judiciária aprovada em 03/07/17 pelo Pleno do Tribunal de Justiça do Estado do Ceará, e que agora será encaminhada à Assembleia Legislativa para transformação em lei. E estarrece porque inobstante baseada em dados estatísticos e em alegadas dificuldades financeiras, sua concepção desprezou claramente os interesses da coletividade e de seus jurisdicionados, visando tão somente atender aos interesses da máquina estatal, em detrimento daqueles a quem legal e constitucionalmente deveria servir. Ademais, claramente afrontosa a princípios clássicos do ordenamento jurídico brasileiro e internacional.

Com efeito, logo em seus “considerandos”, a malsinada proposta reconhece que tem origem nas “limitações orçamentárias impostas ao Poder Judiciário do Estado do Ceará por força da promulgação da Emenda Constitucional Nr 88, de 21 de dezembro de 2016, que instituiu novo regime fiscal no âmbito dos orçamentos do Estado, a vigorar por dez exercícios financeiros, importando no congelamento dos gastos públicos, e, por consequência, na necessidade de racionalização da estrutura judiciária para fazer frente à nova realidade”.

E reconhece, também, que seu embasamento legal reside no art. 9º, da Resolução Nr 184, de 06 de dezembro de 2013, do Conselho Nacional de Justiça, segundo o qual os tribunais “devem adotar providências necessárias para extinção, transformação ou transferência de unidades judiciárias e/ou comarcas com distribuição processual inferior a 50% da média de casos novos de magistrados do respectivo tribunal, no último triênio”, podendo “transferir a jurisdição da unidade judiciária ou Comarca para outra, de modo a propiciar aumento da movimentação processual para patamar superior”, sem prejuízo da instalação de Postos Avançados de atendimento.

De logo se vê que a Emenda Constitucional 88, de 21/12/16 carece de legitimidade social, pois veio a lume nos mesmos moldes da perversa Emenda Constitucional Nr.95, de 15/12/16, que o governo federal golpista aprovou num Congresso Nacional repleto de parlamentares corruptos, congelando por longos 20 anos os gastos de custeio da máquina estatal, justamente os que permitem o país construir mais escolas, hospitais, postos de saúde e outros benefícios de interesse principalmente das classes trabalhadoras e das camadas mais sofridas da população. Sob esse aspecto desbordou claramente da pranteada tradição cearense segundo a qual “o sertanejo é antes de tudo um forte”, não esmorece e não se aquieta quando seus direitos são surrupiados, desrespeitados ou vilipendiados.

Demais disso, a proposta do TJE é visivelmente afrontosa a princípios constitucionais e legais consolidados, e, sob esse aspecto, eivada de ilegitimidade política. Veja-se:

A – Princípio da Inafastabilidade da Jurisdição ou do Acesso à Justiça

O art. 5º, Inciso XXXV, da Constituição Federal, proclama solenemente que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.

Ora, é mais que evidente que a desativação (extinção) de 34 Comarcas e sua transformação em “Termos Judiciários”, bem como a Transferência de 26 Comarcas para outras de maior volume de processos, como quer o Tribunal de Justiça do Estado, implica em maiores dificuldades, senão no próprio impedimento do acesso à Justiça para grande parte das populações dos municípios em que isso acontecer. E o acesso à Justiça, para além de um direito fundamental, conforme disposto no Título II – Dos Direitos e Garantias Fundamentais, da Constituição Federal, é, também, um dos mais básicos direitos humanos do nosso ordenamento jurídico, no entendimento majoritário da doutrina e da nossa melhor jurisprudência.

Nessa senda, só cabe ao Estado dar efetividade ao princípio constitucional garantidor do direito fundamental de acesso à Justiça, jamais dificultando ou impedindo ao cidadão o exercício desse direito, o que de fato ocorrerá se aprovado o malsinado projeto de reforma do Código de Organização Judiciária do Tribunal de Justiça.

 B – Princípio da Efetividade da Tutela Jurisdicional

Como visto acima, o art. 5º, Inciso XXXV, da CF, proclama que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.

Esse princípio confere ao Estado o monopólio da função jurisdicional, daí porque resta vedado ao cidadão o exercício da auto-tutela no campo da aplicação da justiça. Em consequência tem, o Estado, o dever de prestar jurisdição ao cidadão, assim como este tem o direito subjetivo de exigi-la a qualquer tempo, no exato momento e na dimensão de sua necessidade.

Por essa razão qualquer dificuldade ou o impedimento de acesso do cidadão à Justiça, decorrente do malsinado projeto do Tribunal de Justiça, carece de legitimidade política pela via de sua visível inconstitucionalidade formal e material, pelo que deve ser sumariamente rejeitado;

C – Princípio da Isonomia de Tratamento

O art 5º, caput, da Constituição Federal, proclama que “Todos são iguais perante a lei”, acrescentando, seu inciso I, que “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações”.

Inscrito no Título II, que trata dos Direitos e Garantias Fundamentais, esse direito básico resta gravemente afrontado quando o Projeto de reordenamento aqui tratado extingue comarcas ou transfere algumas delas para outras com maior volume de processos, dificultando o acesso à Justiça dos cidadãos residentes na jurisdição de cada uma das comarcas extintas ou transferidas, ou seja, dando tratamento diferenciado e não isonômico a esses cidadãos, relativamente aos residentes nas comarcas não afetadas pelas modificações propostas pelo Tribunal.

Portanto, também sob o aspecto da ausência da isonomia, o malsinado projeto de reordenação jurisdicional do Tribunal de Justiça é claramente inconstitucional;

D – Princípios da Razoável Duração do Processo e da Celeridade Processual

Diz a Constituição Federal, art. 5º, Inciso LXXVIII, que “a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”

Direitos fundamentais inscritos no Título II, da Carta Magna, esses dois princípios são rotineiramente desrespeitados mesmo quando há comarca no município, por uma série de fatores alheios à comunidade jurisdicionada, como ausência de magistrados, de Promotores de Justiça, de peritos judiciais, etc. Agora, com o malsinado projeto do Tribunal de Justiça, tanto a razoável duração do processo, como a celeridade processual, serão fortemente afetadas relativamente às populações residentes nas comarcas extintas ou transferidas. E isso, é óbvio, afronta firmemente a Constituição Federal vigente, devendo, também por esse motivo, ser devidamente rechaçado.

E – Princípio da Vedação ao Retrocesso Social

Trata-se de um princípio reconhecido hoje pela moderna doutrina jurídica e pela jurisprudência mais elevada, refletindo o próprio grau civilizatório de cada país.

No Brasil esse princípio foi tratado pela Segunda Turma do STF, no ARE 639337, de relatoria do Ministro Celso de Mello, julgado em 23/08/2011, DJe-177, de  15.09.2011, Ementário Vol-02587-01, PP-00125. Segundo esse julgado, o princípio do não retrocesso social “impede, em termos de direitos fundamentais de caráter social, que sejam desconstituídas as conquistas já alcançadas pelo cidadão ou pela formação social em que ele vive”.

No caso concreto, além das inconstitucionalidades acima enumeradas, o projeto de reorganização do Código de Organização Judiciária do Tribunal de Justiça causará enorme retrocesso justamente nos municípios de menor desenvolvimento econômico e social, aqueles onde as comunicações são mais precárias e as populações mais carentes, as quais terão mais dificuldades e maiores gastos para acessar a jurisdição a que têm direito, numa situação de desequilíbrio e de desproteção que beira a verdadeira discriminação social patrocinada pela própria administração pública.

F – Princípio da Dignidade da Pessoa Humana

O princípio da dignidade da pessoa humana encontra-se absolutamente entranhada no seio de nossa Carta Política, numa relação quase umbilical desde a proclamação preambular, passando por diversos outros dispositivos, em especial os que tratam dos Princípios Fundamentais, dos Direitos e Garantias Individuais e Coletivas, e dos Direitos Sociais.

No preâmbulo e no art. 1º, declara-se um Estado Democrático de Direito assegurador do exercício dos direitos sociais, da igualdade e da justiça, tendo como um dos seus  fundamentos a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), e como um dos objetivos fundamentais “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (art. 3º, IV).

Dentro desse amplo espectro, não é despiciendo afirmar que o projeto de extinção de comarcas ou de transferência da jurisdição, na forma como proposta pelo Tribunal de Justiça cearense, consubstancia clara afronta, em vários aspectos, ao princípio constitucional da dignidade da pessoa humana.

Com já visto acima, o acesso à jurisdição é um direito fundamental, assim, o não acesso a ela ou sua dificultação, materializa grave afronta do Estado ao conjunto de elementos e princípios que tipificam e perfazem a dignidade da pessoa humana, que em sua forte essencialidade vinculam o Estado quanto à garantia dos direitos fundamentais do jurisdicionado, entre os quais a prestação judiciária célere e em razoável duração, ou o direito de proteção da Justiça.

No campo doutrinário brasileiro e internacional este tem sido reconhecido como um dos mais básicos direitos humanos, que no caso em espécie estaria sendo denegado a uma camada da população em sua grande maioria mais vulnerável e mais dependente do próprio poder público, e para a qual não se pode prescindir de uma prestação judiciária equânime, isonômica e justa.

G – Princípio da Aderência da Jurisdição ao Território

Não há dúvida de que a extinção ou transformação de comarcas fere frontalmente o princípio processual da aderência da jurisdição ao território, pelo qual, em combinação com o princípio da inafastabilidade da jurisdição, é sumamente importante para a boa e justa solução da demanda que o julgador esteja próximo de onde os fatos ocorreram. Com efeito, em seu mister profissional o magistrado necessita vivenciar o dia-a-dia da comunidade em que exerce sua jurisdição, sendo claramente danosa qualquer ação no sentido de afastá-lo ainda mais da vida real que precisa efetivamente conhecer.

H – Redução de Custos e Outras Formas

Na mensagem aprovada e tornada pública em 03/07/17, restou incomprovada a alegada economia que resultaria da reorganização judiciária proposta, ou que de outro modo tivesse o Tribunal proponente esgotado todos os esforços no sentido de reduzir custos operacionais e de outras naturezas, de modo a encontrar outros caminhos para suprir suas necessidades financeiras sem prejuízo para os jurisdicionados.

Conclusão

Ante as razões acima, temos como claramente equivocada a decisão do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado do Ceará, no sentido de extinguir radicalmente 34 Comarcas Vinculadas e de agregar a Comarcas existentes outras 26, porquanto afrontosos a vários princípios fundamentais da Constituição da República e principalmente por serem gravemente prejudiciais aos direitos dos jurisdicionados e da própria cidadania.

Fortaleza, 04 de julho de 2.017

Inocêncio Rodrigues Uchôa
Advogado de Uchôa Advogados Associados
Assessor Jurídico da FETAMCE


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