Reflexões sobre o acesso à Justiça

Modernamente, o problema do acesso à justiça foi catalogado com método no contexto do chamado Projeto Florença, protagonizado por um grupo de juristas sensíveis à causa, cujos estudos foram publicados em meados da década de 1970. A obra mais célebre que reflete a inquietação daqueles pensadores foi escrita por Mauro Cappelletti e Bryan Garth, intitulada Acesso à Justiça. Trata-se de um marco teórico importante, que descortinou questões não só jurídicas, mas com franjas que se irradiam sobre ciências afins, como sociologia, política e economia.

À época, o fenômeno já era enfrentado de forma abrangente, contemplando suas múltiplas dimensões, adotando-se então um conceito amplo de acesso à justiça, superando as fronteiras da perspectiva reducionista (e equivocada) jungida ao mero peticionamento de conflitos de interesse perante o poder judiciário. Nesse sentido, os desafios ou enfoques relacionados à problemática do acesso à justiça foram descritos em três ondas, a saber: assistência judiciária gratuita, tutela dos direitos difusos e efetividade do sistema de justiça.

Com efeito, aqueles juristas abordaram soluções de variados matizes, implementadas por diversos ordenamentos jurídicos, cada qual, naturalmente, próprio à cultura jurídica de seu país, face às peculiaridades de cada sistema jurídico e de cada sociedade. Para o problema da assistência gratuita ao hipossuficiente, temos os modelos do munus honorificum (ou advocacia pro bono ou voluntária); o sistema judicare (advogados particulares remunerados pelo poder público) e o advogado público remunerado pelos cofres públicos. Quanto à representação dos direitos difusos (aqui tidos como os metaindividuais), temos a técnica do advogado privado que defende interesse público; a defesa do interesse público por associações representativas de coletividades e/ou direitos metaindividuais (meio ambiente, consumidor, etc.); a defesa do interesse público por procuradores ou organismos do poder público. Em todo caso, é possível divisar sistemas combinados, também chamadas soluções pluralísticas.

No que concerne à assistência jurídica, o Brasil adotou o sistema do advogado público, no caso, o Defensor Público, criando para o exercício desse mister a instituição Defensoria Pública, sem prejuízo da advocacia pro bono e, em hipóteses excepcionais, da atuação de advogados privados, os quais, face à vedação ao enriquecimento sem causa por parte do Estado, devem ser remunerados quando nomeados para atuar em favor de partes desassistidas de advogado ou Defensor. No caso da defesa dos direitos metaindividuais, adotou-se sistema híbrido, bastante democrático, facultando-se essa atuação a qualquer cidadão (Ação Popular), sindicatos, associações e entidades classistas (Mandado de Segurança Coletivo), bem como associações civis e organismos estatais (Ministério Público, Defensoria Pública, União, Estado, Distrito Federal, Municípios, autarquias, etc), que dispõem da Ação Civil Pública como instrumento de veiculação dos interesses coletivos.

Por fim, no que diz respeito à efetividade do sistema jurisdicional, temos não um conjunto de técnicas, mas um grande mosaico de iniciativas tendentes a proporcionar uma justiça mais efetiva ao cidadão, como os sistemas de auto-composição e solução extrajudicial de conflitos (mediação, conciliação e arbitragem), os procedimentos diferenciados, as iniciativas de eficientização do sistema de justiça visando à celeridade processual, a criação de juizados especiais de pequenas causas, a redução das possibilidades recursais, melhor aparelhamento, dentre outros.

No Brasil, a Defensoria Pública ocupa o papel de instituição vocacionada a proporcionar acesso à justiça à população, em suas múltiplas dimensões. Em seu grande mosaico de atribuições, encontram-se, dentre outras, a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados; a promoção da solução extrajudicial de conflitos visando à composição entre as pessoas em conflito de interesses; a atuação nos juizados especiais; a defesa dos direitos e interesses coletivos de agrupamentos socialmente vulneráveis; a garantia, em processos administrativos e judiciais, dos princípios da ampla defesa e do contraditório.

Dentre as suas várias funções institucionais, sobeja em importância a difusão e a conscientização dos direitos humanos, da cidadania e do ordenamento jurídico, atribuição que vem sendo chamada de educação em direitos, indispensável a que o cidadão, a partir da identificação de direitos que integram abstratamente o seu patrimônio jurídico, passe a reivindicar concretamente prestações constitucionais que traduzem justas expectativas de tutela jurídico-social, sobretudo no que pertine aos ditos novos direitos ou direitos não tradicionais. Dentre eles, temos vários direitos sociais de estatura constitucional que orbitam o princípio-valor da dignidade da pessoa humana, ainda tão negligenciados pela administração pública, como moradia, saúde, educação, assistência social.

Atualmente, essa nova gama de direitos vem ganhando cada vez mais relevância, com crescente respaldo na realidade social, nas leis e nos precedentes jurisprudenciais dos tribunais, numa tendência evolutiva que deve mostrar-se irreversível se o ordenamento jurídico brasileiro deseja, efetivamente, passar da mera proclamação à efetivação dos direitos dos seus cidadãos.

Nessa perspectiva, temos que o fortalecimento dos instrumentos assecuratórios da promoção dos direitos humanos, da defesa dos direitos fundamentais dos hipossuficientes em sentido amplo e dos agrupamentos socialmente vulneráveis expressa claramente as expectativas de uma sociedade que intenciona ver o grande mosaico de direitos que pertence a cada cidadão passar da retórica à prática.

Criada pela Constituição Federal de 1988, a Defensoria Pública ainda se encontra longe de ostentar condições ideais ao adimplemento de seu tão relevante papel social. Há estados onde a instituição sequer existe, outros em que se mostra incapaz de tornar plenamente efetivas as reivindicações de seu público alvo, ante a ausência de estrutura humana e material. No estado do Ceará, por exemplo, segundo dados do Ministério da Justiça, o número ideal de Defensores seria acima de 600 profissionais, quando na prática os seus quadros não exibem sequer metade desse número. Cerca de 120 municípios não contam com Defensoria Pública instalada, contrariando determinação da própria Constituição do Estado do Ceará.

Em São Paulo, apesar da adoção pelo ordenamento jurídico brasileiro do sistema da prestação de assistência jurídica por instituição de Estado através de profissionais concursados, na dicção da Lei Complementar Federal nº 80/94 (Lei Orgânica Nacional da Defensoria Pública), com claras vantagens como as garantias funcionais da independência dos seus membros (para poderem demandar com total segurança quem quer que seja, inclusive a administração pública, se for o caso), inamovibilidade, irredutibilidade salarial e estabilidade, além das garantias institucionais de autonomia administrativa, financeira e orçamentária (estas ainda no campo meramente retórico), o governo do estado adotou, paralelamente à Defensoria, o sistema judicare, remunerando advogados particulares com recursos públicos para a prestação do serviço público essencial dedicado constitucionalmente à Defensoria.

Com efeito, os valores desembolsados apenas em 2011 em pagamento a advogados privados exercitando funções institucionais da Defensoria Pública, segundo dados da DPSP, seriam suficientes para pagar a folha da Defensoria do Ceará por quase uma década. Portanto, para além do caráter insubstituível do Defensor Público, face à sua multiplicidade de prerrogativas e funções institucionais tendentes a assegurar-lhe a condição de efetivo vetor de acesso à justiça em amplo sentido, infere-se que a desvirtuação do sistema vigente atenta, além de tudo, contra o próprio erário, senão contra os princípios da economicidade, da eficiência e da previsão orçamentária. Aparentemente, os gestores públicos preferem um remendo caro e ineficaz à solução mais econômica e juridicamente adequada, mas que pode vir a amplificar as reivindicações sociais contra a própria administração.

A visão de que o povo e as instituições não passam de empecilhos à vida do gestor são uma evidência do quão imatura todavia é a nossa democracia.

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