‘Reformas’ da Previdência e trabalhista são desmonte do Estado democrático de direito

Avaliação é da presidenta da Associação Juízes para a Democracia (AJD), Laura Benda: “As mudanças propostas penalizam apenas os trabalhadores”

A Associação Juízes para a Democracia (AJD) divulgou nota a respeito da “reforma” da Previdência do governo de Jair Bolsonaro. De acordo com o texto, sob o mesmo argumento “falacioso” da urgência econômica que justificou a tramitação e aprovação da “reforma” trabalhista, o governo agora pretende convencer a população de que mudanças previdenciárias que corroem os pilares constitucionais da seguridade social são imprescindíveis.

A presidenta da AJD, Laura Benda, teme uma “conjugação dramática” da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 6/2019 com a nova legislação trabalhista que já repercute no atual cenário brasileiro com aumento de colocações informais no mercado de trabalho, desemprego em alta e achatamento salarial.

“Será uma conta que não fechará. As duas reformas são a principal expressão do desmonte do Estado democrático de direito”, avalia, em entrevista ao jornalista Glauco Faria, da Rádio Brasil Atual.

Leia a entrevista na íntegra 

Com base na nota da AJD, quais são as são as principais inconstitucionalidades que estão na PEC da “reforma” da Previdência? Ou na prática o que se trata é de um desmonte do cerne daquilo que foi assegurado pela Constituição?

O ponto é bem esse. Em primeiro lugar o grande problema da PEC é que ela vem do nada, sem que as pessoas possam entender, até porque proibiram que a gente acessasse os estudos. De onde eles tiraram que seria necessário tomar esse tipo de medida para essa suposta economia? Esse já é um primeiro problema.

Mas percebemos uma inconstitucionalidade na própria lógica que afronta o sistema de seguridade social. As mudanças propostas penalizam apenas os trabalhadores, portanto, atacam a ideia de solidariedade, que é um dos princípios do sistema, e especialmente os trabalhadores com rendas menores, então gera uma desigualdade que não pode ser vista como constitucional.

E com relação à desconstitucionalização, hoje a gente tem os direitos previdenciários assegurados na própria Carta Constitucional, mas a proposta do governo passa parte desses diretos para a legislação ordinária. Como você vê esse aspecto?

Acho que esse é o mais grave de todos, inclusive está sendo bem polêmico. Espero que nada fique da PEC, mas esse ponto especialmente. Aí abre-se uma margem, sob o pretexto de economia de ocasião, que sempre existe em quaisquer governos. A cada ano, por exemplo, pode haver mais e mais reformas, que não precisarão de quórum qualificado. Não é preciso um mínimo de coalizão do Congresso Nacional para aprovação, o que é muito grave porque dá margem à completa desestruturação do sistema de Previdência e seguridade social.

A nota da AJD também menciona os termos técnicos da legislação previdenciária que dificultariam o entendimento da pessoas em relação àquilo que está sendo mudado. Você acha que esse é também outro aspecto fundamental, as pessoas ainda não conseguiram captar aquilo que muda na reforma da Previdência?

Foi anunciada uma perspectiva de milhões em gastos com a propaganda do governo para a aprovação da reforma, mas o que se viu até agora é que, ao invés de informar a população, a propaganda é sempre no sentido de que isso é uma salvação, que combate os privilégios, mas não é nada disso. Não só a proposta não está embasada em estudos, que nunca foram apresentados, como o impacto real na vida dos trabalhadores, especialmente os mais vulneráveis, os rurais por exemplo, não está explicado de maneira nenhuma.

Mas, mesmo sem isso, as pessoas estão desconfiadas. A gente percebe por manifestações que aconteceram no Dia do Trabalhador e pela sensação nas ruas que as pessoas estão entendendo que vão precisar trabalhar muito mais e ganhar menos, e até por isso o governo está tão empenhado em gastar tanto com a propaganda.

Um dos pontos destacados pela pesquisa CNI/Ibope divulgada na semana passada mostra que boa parte das pessoas, mesmo aquelas que rechaçam a proposta de reforma da Previdência, acreditam que ela é necessária. Você avalia que esse argumento, questionável, de que a reforma é de fato necessária vai acabar ajudando o governo?

Acho que pode ajudar, infelizmente. Existe uma percepção de que a gente tem um déficit fiscal, que é verdadeiro, mas a questão é que não precisa dessa reforma para que ele seja resolvido. Na verdade, existe uma série de estudos, a própria CPI da Previdência demonstrou isso, que a Previdência não é exatamente deficitária ou não seria se houvesse, além da cobrança dos inadimplentes, uma série de benefícios oferecidos às empresas a título de desoneração e, principalmente, se é extinta a ideia da DRU (Desvinculação das Receitas da União), em que o governo pega uma parte do orçamento, que é por lei vinculado a alguma coisa, e gasta com outra.

A economia que se fizesse com isso seria suficiente para resolver o problema de equilíbrio das contas, não seria necessária essa proposta de reforma da Previdência. Mas isso não é dito e não é, portanto, compreendido pela população.

E a AJD pretende tomar alguma iniciativa não só no âmbito da comunicação, mas também em relação à própria tramitação da proposta de reforma da Previdência?

Vamos considerar ainda, por sermos uma associação de juízes e juízas temos algumas ressalvas em interferir diretamente em um processo legislativo, até para que isso não comprometa a jurisdição dos nossos associados. Em um primeiro momento a gente está, muito antes dessa proposta, desde a proposta do governo de Michel Temer, engajado em um campanha informativa. Pretendemos prosseguir nesse caminho e pensar melhor se existe alguma outra medida para o futuro.

Você é uma juíza que atua no âmbito da Justiça do Trabalho. Como vê a conjugação dos efeitos da “reforma” trabalhista com os da “reforma” previdenciária? 

É uma conjugação dramática. A reforma já foi o maior ataque aos direitos sociais promovido desde a instalação do Estado democrático de direito do país, com a Constituição. E, aliás, uma coisa está ligada a outra, porque a gente percebe, passado um ano e meio, que só aumentaram as colocações de modo informal, houve aumento do desemprego, achatamento dos salários, ao mesmo tempo em que é exigido que as pessoas trabalhem mais tempo e contribuam mais. Será uma conta que não vai fechar.

As duas reformas são a principal expressão de um cenário de desmonte do Estado Democrático de Direito, que é a ideia de que não será possível a ninguém, a nenhum trabalhador comum ter as condições para se aposentar e receber os benefícios sócias. É muito grave.

Ouça a entrevista

Você pode conferir a partir de 1:42:56

Leia a nota da ADJ na íntegra

A Associação Juízes para a Democracia (AJD), entidade não governamental e sem fins corporativos, que tem dentre seus objetivos estatutários o respeito aos valores próprios do Estado Democrático de Direito, vem manifestar-se sobre o Projeto de Emenda Constitucional nº 06/2019, tratado como “reforma da previdência”.

Sob o mesmo argumento falacioso da “urgência econômica” que justificou a tramitação e aprovação da malfadada reforma trabalhista, o governo agora pretende convencer a população da imprescindibilidade de uma reforma que corrói os pilares constitucionais da seguridade social. Apesar de ter a alcunha de reforma, a PEC nº 06/2019 fixa as bases para a extinção do sistema de previdência previsto na carta maior.

A constituição de 1988 previu, nos artigos 194 e seguintes, um sistema solidário de proteção social de trabalhadoras/es contra os eventos que importam vulnerabilidade social como a velhice, a doença, o desemprego. O sistema de seguridade social, que inclui a saúde, previdência e assistência social, é estruturado em uma proposta

de solidariedade que pretende universalizar seu acesso, o que, no caso da previdência, concretiza-se no seu tríplice custeio pelo Estado, empregados e empregadores.

A proposta de emenda constitucional, seguida de alterações legislativas, que está em trâmite atinge o cerne do sistema da seguridade social. As suas disposições dificultam o acesso das/os trabalhadoras/es aos benefícios da previdência, caminhando na contramão da proposta da universalidade do sistema; ao tempo em que os valores dos benefícios são reduzidos, deixando os trabalhadores descobertos de efetiva proteção social, são, ainda, fixadas as bases para o chamado sistema de capitalização, no qual o ônus do custeio recai exclusivamente sobre o trabalhador, pondo fim, portanto, ao sistema de solidariedade projetado na constituição.

Dentre as propostas de alteração previstas pelo governo, constam:

1. Aumento da idade de aposentadoria das trabalhadoras de 60 para 62 anos, vulnerabilizando ainda mais as mulheres quanto à proteção social do trabalho;

2. Aumento do tempo de contribuição necessário à aposentadoria por idade de 15 para 20 anos, dificultando sobremaneira o acesso ao benefício de aposentadoria, em especial considerando o alto e crescente índice de informalidade no trabalho;

3. Alteração da contagem do tempo de contribuição para considerar somente a competência cuja contribuição seja igual ou superior à contribuição mínima da categoria, prejudicando novamente os trabalhadores da informalidade e aqueles submetidos ao novo e precarizado contrato intermitente de trabalho;

4. Vedação da conversão do tempo de trabalho especial, aquele em condições que são danosas a saúde do trabalhador, em tempo comum, de forma que estes trabalhadores serão prejudicados quando deixem de trabalhar sobre essas condições, uma vez que não poderão aproveitar o acréscimo do tempo especial no cálculo para a aposentadoria;

5. Previsão do “gatilho etário” que aumenta automaticamente a idade para aposentadoria sempre que aumente a expectativa de sobrevida da população, sem, todavia, prever um decréscimo quanto houver redução desta expectativa;

6. Alteração da fórmula de cálculo do salário de beneficio que deixará de considerar a média dos 80% maiores salários de contribuição para considerar 100% dos salários de contribuição, o que reduz o valor do benefício, uma vez que os menores salários fazem o valor médio decair.

7. Alteração do cálculo da renda mensal inicial tanto para aposentadoria quanto para as pensões para 60% do valor do salário de benefício somado a 2% para cada ano que exceda os 20 anos de contribuição, sendo que na forma de cálculo atual as/os trabalhadoras/es partiam com 85% do valor do salário de beneficio somado a mais 1% por ano de contribuição que excedesse aos 15 anos necessários;

8. Estabelece a possibilidade de incluir por lei exceções à contribuições dos empregadores, abrindo caminho para o regime de capitalização, que onera exclusivamente os trabalhadores e , na prática, torna impossível a sustentabilidade do regime público da previdência, fortalecendo o mercado financeiro da previdência privada;

9. Obrigatoriedade de contribuição anual para trabalhadores rurais pelo período de 20 anos, em oposição à regulamentação atual na qual as/os trabalhadoras/es do campo apenas comprovam o trabalho

10. Redução do valor do Beneficio de Prestação Continuada na idade entre os 65 e 70 anos para o valor de R$ 400,00. Nesta proposta, o benefício passaria a ser pago aos 60 anos, mas não em seu valor integral, que só passaria a ser pago na integridade aos 70 anos, idade superior à expectativa de vida em muitas regiões do país.

Os termos técnicos e cálculos típicos da legislação previdenciária, por vezes, dificultam o entendimento da população quanto às reais alterações que estão sendo promovidas, mas, uma vez explicadas, fica evidente que a chamada reforma da previdência não tem como principal objetivo “acabar com os privilégios” como sustenta o governo. Ela atinge, principalmente, as /os trabalhadoras/es de baixa renda, com vínculos de emprego precarizados e informais.

As especiais prejudicadas pela “reforma da previdência” são as trabalhadoras mulheres, que além de terem a idade de aposentadoria aumentada, deixando de levar em consideração as estatísticas que mostram a sua sobrecarga de trabalho em razão da tripla jornada ( trabalho, casa e filhos), são mais afetadas por todas as demais disposições, uma vez que ocupam em maior número os postos mais precarizados e informais de trabalho.

O golpe final ao sistema da seguridade social é a sua “desconstitucionalização”. A PEC 06/2019 retira da Constituição Federal matérias relacionadas ao regulamento da seguridade e da previdência, de forma que futuras alterações possam ser feitas de maneira facilitada pelo congresso, não mais necessitando das formalidades de aprovacão de emenda constitucional e seu quorum qualificado para subtrair ainda mais direitos das/dos trabalhadores.

Por essas razões, a Associação Juízes para a Democracia (AJD) manifesta seu total repúdio à proposta de emenda constitucional nº 06/2019 , reafirmando seu compromisso com valores sociais constitucionais e pela defesa do regime de solidariedade da Seguridade Social, ao tempo que se une aos demais setores progressistas na luta contra sua aprovação.

São Paulo, 06 de maio de 2019.

Fonte: Rede Brasil Atual


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